A Diocese de Roraima celebra, em 2025, os 300 anos de presença missionária da Igreja Católica em Roraima. Uma história profundamente marcada pela atuação evangelizadora junto aos povos originários, atravessada por conflitos, desafios, fidelidades e um compromisso constante com o Evangelho da justiça.
Desde a chegada dos frades carmelitas, em 1725, passando pela atuação dos beneditinos, pela Teologia da Libertação e pela presença de missionários e missionárias proféticos, a Igreja particular de Roraima foi se forjando na travessia entre o altar e a resistência.
“A presença missionária foi, desde o início, ambígua: por um lado, mediadora do contato entre povos indígenas e o Estado colonial; por outro, cúmplice de processos de dominação. Mas em Roraima, houve também resistência, transformação e luta ao lado dos povos indígenas.” Márcia Maria de Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR)
O historiador e professor da UFRR, Jacy Vieira, lembra que a atuação católica nunca foi neutra. Desde o século XVIII, os religiosos enfrentaram oposição das elites locais ao defenderem os povos indígenas. “Um frei foi preso e enviado a ferros para Manaus por se recusar a entregar indígenas ao trabalho forçado”, recorda.
A Missão Porto Alegre, fundada ainda no período colonial, foi um polo de presença católica em meio a tensões. No século XX, os beneditinos chegaram e fundaram estruturas religiosas e sociais fundamentais, como a Igreja Nossa Senhora do Carmo e o Colégio Calungá. No entanto, sua postura independente frente às oligarquias locais gerou conflitos e perseguições.
A Igreja que opta pelos pobres
A partir do Concílio Vaticano II e do Encontro de Medellín, a Diocese passou a viver uma virada pastoral. “É quando nasce a Teologia da Libertação e a pastoral indigenista”, explica Jacy. “Os missionários passam a atuar na defesa dos direitos, da saúde, da terra, da identidade cultural dos povos indígenas.”
Com essa nova perspectiva, emergem nomes que marcaram a vida eclesial da região: Dom Aldo Mongiano, Padre Jorge Dalben, irmão Carlo Zacquini, irmã Cleusa Roddy, entre muitos outros. Não eram apenas evangelizadores sacramentais, mas também construtores de cidadania, defensores dos povos originários.
“Eles não vieram apenas rezar e crismar. Eles vieram proteger, denunciar, educar, transformar. Foram parte decisiva na conquista da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, ressalta Jacy.
Um compromisso diocesano com os povos indígenas
A partir de 1978, a Diocese assumiu oficialmente sua opção preferencial pelos povos indígenas, reconhecendo-os como os “mais pobres entre os pobres”. Um curso de indigenismo, assessorado pelo jesuíta Padre Bartomeu Melià, resultou no documento “Sobre a realidade indígena de Roraima”, marco histórico do compromisso da Igreja local.
Desde então, todos os planos pastorais diocesanos mantêm viva essa prioridade: a defesa da vida, das culturas, dos territórios e da espiritualidade dos povos originários. Um testemunho de fidelidade ao Evangelho que enfrentou perseguições, campanhas difamatórias e ameaças constantes, mas jamais se calou.
“Essa Igreja que caminha com os povos, que ouve, que aprende, que protege, não mais a que converte, mas a que resiste junto, é a marca da Diocese de Roraima”, afirma a professora Márcia de Oliveira.
Uma Igreja perseguida, mas profética
Dois dos bispos da Diocese presidiram o Conselho Indigenista Missionário (CIMI): Dom Aparecido José Dias e Dom Roque Paloschi. Essa ligação institucional reforça o protagonismo da diocese na causa indígena, mesmo diante de perseguições severas.
A memória de mártires da Amazônia, como Irmã Cleusa, Padre Ezequiel Ramin e Irmã Dorothy Stang, reforça a dimensão profética da missão. Eles tombaram por defender a vida ameaçada e continuam a inspirar. “O bispo é para todos, mas deve dar maior atenção aos mais fracos”, escreveu Dom Aldo.
“Nossa Igreja em Roraima foi, por isso, pobre, perseguida e profética.”
Herança e futuro: a coragem de seguir em frente
Hoje, novos desafios surgem: igrejas neopentecostais que desrespeitam culturas indígenas, pressões do agronegócio, enfraquecimento de políticas públicas. Mesmo assim, a Igreja continua presente, anunciando o Reino de Deus com coragem e esperança.
A celebração dos 300 anos é mais que uma efeméride. É tempo de fazer memória, agradecer, pedir perdão e renovar o compromisso missionário. Como nos alerta o Papa Francisco na Gaudete et Exsultate:
“Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam enquanto outros são descartados.”
O ensinamento do Concílio Vaticano II, aprofundado em Santarém e reafirmado no Sínodo da Amazônia, convida a uma Igreja encarnada, solidária, ecológica e profética. Uma Igreja que não se omite, mas se coloca ao lado dos povos oprimidos, como sempre tentou fazer a Diocese de Roraima, com seus bispos, religiosas, missionários e leigos comprometidos.“Esse é o tempo favorável” (2Cor 6,1).
“Cristo aponta para a Amazônia, e a mão que aponta é a mão de um Crucificado ressuscitado.” (Documento de Santarém, n. 23)
“Em meio às prioridades assumidas pelos missionários estava a defesa das terras indígenas e a denúncia das violações de toda ordem contra as comunidades originárias”, escreve Gabriel Vilardi, jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Gabriel é membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima e vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região Serra da Lua.
Que essa celebração jubileu seja, para todo o Povo de Deus em Roraima, um renovado chamado à missão, uma memória viva de fidelidade ao Evangelho, e uma esperança encarnada no rosto indígena que, mesmo crucificado, continua a ressuscitar.
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