Atenção, a reportagem a seguir contém relatos de violência que podem gerar gatilhos, se você é vítima de violência, procure ajuda e denuncie. Ligue ao 180.
Veiculada no jornal Monte Roraima noticias 2ª edição.
"Minha filha era pequena, eu apanhava quase todos os dias. Era ameaçada, humilhada, xingada. Ele se transformava em outra pessoa.” Este é o início do relato de Dona Lene, um nome fictício utilizado para proteger a identidade de uma mulher indígena da etnia macuxi, atualmente com 49 anos.
O ciclo de violência iniciou-se cedo, aos 18 anos. Naquela época, ela engravidou pela primeira vez, mas perdeu o bebê devido às agressões. Na segunda gestação, deu à luz uma menina que cresceu testemunhando os abusos frequentes no lar.
As agressões eram de natureza física, psicológica e impregnadas de preconceito. “Ele me chamava de feia, me traía, me enganava, e me chamava de caboca de forma debochada, por eu ser indígena. Quando bebia, tornava-se ainda mais violento, me batia, me enforcava e me humilhava”, relembra.
A dor não se restringia apenas às marcas físicas. “Era uma dor mental, angústia, uma dor na alma. Meu único pensamento era na minha filha”, relata.
A fuga e a luta na justiça
Cansada de viver sob ameaças, dona Lene tomou uma das decisões mais desafiadoras da sua vida: fugiu de casa. “Deixei meu trabalho de limpeza em uma escola no bairro Pintolândia, peguei minhas coisas e fui morar com minha irmã. Vendi o pouco que tinha, só queria me afastar da violência.”
Contudo, a violência não cessou com a separação. O ex-companheiro se negava a pagar a pensão de maneira regular. “Minha filha já chorou de fome. Não havia roupas ou calçados adequados. Ele dava cinquenta reais, às vezes cem, às vezes nada.”
Foi nesse contexto que a Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR) entrou em sua vida. “Os profissionais da Defensoria me orientaram, segui as instruções e consegui garantir os direitos dela. Foi uma luta, mas conseguimos”, recorda emocionada.
Ela também buscou proteção policial e chegou a solicitar medidas protetivas. “Antes eu era emocionalmente dependente, mas hoje estou livre. Apesar de tudo o que aconteceu, não consigo me relacionar com ninguém até hoje. Mas tenho liberdade, e minha filha também”, afirma.
Para Lene, o acolhimento recebido na DPE foi essencial. “Eles me instruíram, me ouviram e me trataram com dignidade. Isso eu nunca vou esquecer.”
A filha, agora com 29 anos, também optou por não se identificar para proteger sua imagem, mas fez questão de compartilhar como a violência impactou sua vida:
“Eu presenciei tudo até os meus 4 aos 5 anos de idade. A luta por assistência na Defensoria começou quando eu tinha 7 e se estendeu até os 14. Depois, minha mãe voltou para solicitar um aumento na pensão, porque eu já estava no ensino médio e precisava de material escolar. A violência do meu pai contra minha mãe me afetou muito, pois eu o via como uma referência. Antes, ele era meu porto seguro; depois, virou meu pesadelo. Eu era criança e já cheguei a empurrá-lo para tirá-lo de cima da minha mãe, de tanta violência. Você sabe o que isso causa na mente de uma criança? Depois de tantos anos, ainda o vi ocasionalmente, mas não era mais o mesmo. Hoje não guardo ressentimentos, mas isso deixou marcas na minha infância e na vida da minha mãe.”
Onde buscar ajuda
Histórias como a de mãe e filha evidenciam a importância de uma rede de apoio acessível e integrada. Atualmente, mulheres em situação de violência em Roraima podem contar com a Casa da Mulher Brasileira, localizada no bairro São Vicente, em Boa Vista.
Desde sua inauguração, a unidade reúne, em um único local, serviços especializados para garantir proteção e dignidade: acolhimento e triagem, apoio psicossocial, promoção da autonomia econômica, brinquedoteca para os filhos, alojamento temporário e até uma central de transportes para emergências.
A Defensoria Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher atende diariamente no local, das 8h às 14h, oferecendo assistência judicial e extrajudicial. A estrutura também conta com a Delegacia da Mulher e serviços em parceria com a ONU Mulheres.
Durante a instalação da Defensoria Especializada, a defensora pública Terezinha Muniz destacou a importância dessa integração. “Com as instituições centralizadas em um único local, evitaremos a revitimização das nossas assistidas. A Defensoria está mais próxima das mulheres que necessitam dessa atenção jurídica.”
25 anos de compromisso com os direitos das mulheres
A história de mãe e filha, e também de tantas outras mulheres que passaram pela mesma situação estão no marco dos 25 anos da Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR), que serão celebrados em 2025. Desde sua fundação, a instituição se firmou como um espaço de apoio e promoção da justiça para indivíduos em situação de vulnerabilidade.
Somente no primeiro semestre deste ano, a Defensoria Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher realizou 3.155 atendimentos. Desde 2019, instalado na Casa da Mulher Brasileira, o núcleo oferece não apenas orientação jurídica, mas também acompanhamento psicológico e acolhimento humanizado.
Conforme Muniz, o trabalho vai além da resolução judicial. “Integramos toda a rede para conscientizar, promover educação em direitos e fortalecer a prevenção e o combate à violência contra as mulheres em Roraima.”

Apesar dos progressos, os desafios permanecem significativos. A pesquisa "Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil" (Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha) revela que 91,8% das agressões contra mulheres no último ano foram testemunhadas por outras pessoas – muitas vezes, pelos próprios filhos. Mesmo assim, quase metade das vítimas (47,4%) não denuncia ou busca ajuda.
Esses dados reforçam a necessidade de fortalecer a rede de proteção e ampliar o acesso à justiça.
19 anos da Lei Maria da Penha
No mês de agosto, a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, completou 19 anos. Considerada um marco na luta contra a violência de gênero, a lei inova ao definir os tipos de violência contra a mulher (física, psicológica, sexual, moral e patrimonial) e ao estabelecer que a responsabilidade pela proteção cabe ao Estado e à sociedade, e não apenas ao casal.
Um dos principais desafios, é aumentar a conscientização da população sobre a lei. Muitas mulheres não percebem que são vítimas. Acreditam que é uma característica do parceiro ou que ‘faz parte’ da relação. O primeiro passo é entender que a lei define o que é violência.
Outro aspecto crítico é a eficácia das medidas protetivas. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2024, aproximadamente 10% das medidas foram descumpridas, e houve casos de mulheres assassinadas mesmo sob proteção judicial. No mesmo ano, o Brasil registrou 1.492 feminicídios, uma média de quatro por dia. As tentativas aumentaram 19%, ultrapassando 3.800 casos. O dado mais alarmante: oito em cada dez vítimas foram mortas por parceiros ou ex-parceiros, e 64% dentro de suas próprias casas.
Do medo à liberdade
Atualmente, mãe e filha se reconhecem como sobreviventes. A dor da infância marcada pela violência pode não ser apagada, mas a liberdade conquistada demonstra que romper o silêncio é viável. “Eu sofri muito, mas consegui proporcionar uma vida diferente à minha filha. Não foi fácil, mas a Defensoria esteve ao meu lado quando eu mais precisei. Foi a mão estendida que me ajudou a sair da escuridão”, finaliza Lene.
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